O segundo dia de debates do seminário Desafios Políticos de um Mundo em Intensa Transformação foi aberto com o tema “Globalização e a Mudança da Estrutura das Sociedades”. Em sua palestra, o sociólogo Caetano Araújo abordou o tema sob três perspectivas – Estados nacionais, novo mapa da política e partidos como ferramentas da democracia – que agora ganham uma nova dimensão: a disponibilidade de informação permanente.
“Se hoje temos a informação em tempo real, antes tínhamos a rede de informações dos capitais, dona de grande mobilidade. E à medida que os capitais avançam para a extrema mobilidade, os Estados vão diminuindo de poder, pois os capitais têm o poder de veto por omissão, eles deixam de investir”, explicou. A primeira vítima dessa mobilidade, disse, foi o estado de bem-estar social, que já enfrentava a escassez de financiamento.
“Isso continua. Se a Ásia foi uma fronteira industrial, é provável que agora seja a vez da África. E o que os países ocidentais democráticos farão? é possível a eles impor condições de trabalho como na Ásia? Não. Países democráticos agiram de outra forma: investiram em ciência e tecnologia, o que também mudou a estrutura do Estado”, disse, citando o livro A Quarta Revolução, debatida no seminário em palestra do jornalista Adrian Wooldridge.
Segundo Araújo, essa mudança tem uma data simbólica: a última década do século 20 – época em que na França, por exemplo, François Mitterrand, embora eleito por um plataforma social-democrata, tomou direções opostas para enfrentar uma crise econômica.
“Isso nos leva ao segundo impacto: o processo de globalização também mudou o mapa das posições e das oposições politicas no mundo”, afirmou. Se antes as posições eram alinhadas, indo da esquerda à direita, com dois extremos não democráticos e um centro democrático amplo, nos últimos anos essa percepção da politica não se mostra suficiente, pois perpassa a questão do nacionalismo X liberalismo.
Por fim, o sociólogo destacou que, ligados à disponibilidade de informação na internet, nascem os movimentos sociais do século 21. “Antes pessoas iam para rua dizer o que queriam e, geralmente, queriam que alguém fizesse por elas. Hoje, essas manifestações são constantes, podem durar meses e são organizadas de forma horizontal”, explicou. Sempre, reforçou, com palavras de ordem democráticas. “Onde não há democracia, pedem democracia. E onde há, pedem nova democracia, com responsabilização de representantes. A prestação de contas é constante.”
Partidos têm dificuldades no diálogo com os jovens
O sociólogo Sergio Fausto, diretor-superintendente da Fundação FHC, fez uma análise sobre os impactos da mudança estrutural das sociedades nesse mundo globalizado e a influência disso na ordenação político-partidária e na democracia como um todo. Para ele, os partidos hoje são compostos, em sua maioria, por pessoas de uma época que está ficando para trás e, por isso, as estruturas partidárias perderam sua ancoragem na sociedade.
Fausto explicou que há uma enorme dificuldade em conversar com essa nova geração, “os partidos ainda não conseguiram fazer essa ponte”, avaliou.
O sociólogo destacou que o mundo pós-1990 é outro. “O quadro atual é complexo e fragmentado, não se baseia mais apenas em direita e esquerda. Isso cria espaço para os mais diversos movimentos e fortalece o populismo, que começa a aparecer até mesmo nas sociedades democráticas mais consolidadas, como mostram os exemplos de Donald Trump nos Estados Unidos e Marine Le Pen na França”.
“é preciso fazer uma reflexão crítica, se abrir para os novos tempos, entender que a sociedade mudou, mas ao mesmo tempo tomar cuidado com ideias totalitárias e autoritárias”, complementou Sergio Fausto.
Classe média dos países desenvolvidos é a grande órfã da globalização
Terceiro palestrante da mesa “A Globalização e a Mudança nas Estruturas das Sociedades”, o sociólogo Demétrio Magnoli associou fatos como a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, o Brexit na Grã-Bretanha e a ida de Marine Le Pen ao segundo turno da França à queda na renda da chamada “classe média tradicional”, em função de dois fenômenos: a estagnação secular (queda do PIB nos países desenvolvidos) e o enfraquecimento do centro político tradicional.
Magnoli exibiu um gráfico da evolução da renda nos últimos 30 anos, deixando claro que não houve oscilação nas camadas mais pobres e mais ricas, ao contrário do que aconteceu com dois grupos intermediários: a chamada “classe média baixa do mundo”, a nova classe média da Ásia e da América Latina teve um aumento de cerca de 75% na renda; já a classe média tradicional, formada pelas famílias tradicionalmente ligadas à indústria nos países desenvolvidos, teve perdas consideráveis neste período. “Esses são os verdadeiros órfãos da globalização”, disse.
“Um duplo fenômeno ajuda a explicar a estagnação secular: envelhecimento da população, com redução dos economicamente ativos, e a rápida inovação tecnológica, que destruiu a indústria tradicional”, afirmou. “Por sua vez, a estagnação secular ajuda a explicar a queda de renda da classe média tradicional. E isso explica o crescimento dos movimentos nacionalistas, ditos de direita”, completou.
Segundo o sociólogo, houve também um deslocamento geográfico dos votos. Nos Estados Unidos, os votos liberais se concentraram em poucas grandes cidades, enquanto o voto conservador se distribuiu em um grande número de pequenas localidades. “As pessoas se segregam cada vez mais do ponto de vista político e cultural que do ponto de vista da renda. Moram onde há um pensamento semelhante ao delas, ficam isoladas em guetos culturais”, acrescentou.
“Trump ganhou porque venceu num pequeno número de estados do meio-oeste americano, onde vivem os trabalhadores de grandes indústrias. Essas pessoas historicamente votavam nos liberais, no Partido Democrata, mas, como foram expulsos do setor industrial tradicional, traem seu antigo partido e tomam uma postura mais nacionalista”, explicou.
“No caso do Brexit, a diferença pró-saída se deu em função da traição do eleitorado do centro da Inglaterra, das antigas regiões industriais que sempre votaram nos Trabalhistas. Traíram o internacionalismo e votaram no nacionalismo. Já Le Pen foi votada pelos filhos dos antigos eleitores comunistas da França”, disse.
“O enfraquecimento do centro político tradicional, tanto a centro-direita quanto a centro-esquerda, também tem causas ligadas à globalização. Os social-democratas tentam apelar aos jovens, com uma série de ações ligadas às redes sociais”, avaliou Magnoli. Entretanto, ponderou, só conseguirão se se tornarem cada vez mais radicais de esquerda. “A centro-direita e a centro-esquerda perdem eleitorado e abrem caminho para opções cada vez mais dramáticas: os nacionalistas e a nova esquerda radical.”
Fundo de riqueza nacional
O economista Stefan Fölster, coautor de A Riqueza Pública das Nações e diretor do Reform Institute, defendeu a criação de um fundo de riqueza nacional que tenha independência politica e seja gerido por um comitê transparente, escolhido pelo Congresso e não pelo governo, para administrar empresas estatais e a riqueza pública como um todo.
Para ele, o advento da globalização acabou com o monopólio estatal, um fator que é positivo, mas ainda é necessário melhorar a governança em estatais que permanecem monopolizando alguns setores de atuação, como a Petrobras, por exemplo.
Fölster explicou que as empresas estatais, com poucas exceções, têm um desempenho ruim como um todo, especialmente pela influência política direta a que estão expostas e casos de corrupção. “A OCDE mapeou a corrupção nos últimos anos, e as estatais estão envolvidas nos maiores casos”, afirmou.
“Essa governança pouco transparente das estatais, da riqueza pública, prejudica a democracia de diversas formas”, destacou o economista. “A razão mais óbvia é que se o bem público não é gerido de forma transparente, como os cidadãos farão para avaliar os guardiões de sua riqueza? Quando não se tem transparência, surgem oportunidades de corrupção, clientelismo, favorecimento”, complementou.
O economista disse que a renda pública, se mantida nessa forma sombria de governança, cria terreno fértil para o que ele chamou de “Estado soft”, propício para trapaças, negociatas e a corrupção “legal”, onde as empresas estão dentro da lei, mas são exploradas ao máximo, acabando com a confiança da opinião pública nelas. “Isso vira a fraude lícita e gera um custo à sociedade gigantesco, pois as estatais vão perdendo sua capacidade de gerar bem-estar social”.