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Apropriações de 1964

Artigo publicado no Blog do Noblat, na versão on-line do jornal O Globo, em 26/03/2014

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Com os 50 anos do golpe de 1964, tem saído na imprensa e na internet uma enormidade de reflexões sobre o período. Para um país que o senso comum costuma acusar por não ter memória, esse mergulho no passado é formidável. Ele nos permite, entre outras coisas, observar as peculiaridades da nossa relação com o tempo e com a história.

Os sentidos atribuídos a 1964 são os mais díspares.Transportar aquelas tensões para a política de hoje, para fabricar discursos e marchas, só é possível à base de muita irreflexão.

Cinquenta anos depois, tanto o entusiasmo da esquerda pela revolução cubana quanto o desprezo confesso da direita pela democracia soam pueris. No auge da radicalização, ambos os lados se moviam por uma espécie de fetiche das armas dos mais primitivos. O que não significa, todavia, que as consequências daquele tempo devam ser inimputáveis.

Para muitos de nós, que nos envolvemos com o movimento estudantil na luta pela liberdade e fomos perseguidos, presos ou exilados, as lembranças do golpe de 1964 passam longe das sínteses explicativas que temos observado.

Do ponto de vista da vivência, principalmente depois do AI-5, aquele tempo vem à mente por meio de imagens plasmadas em contradições. Memórias de intensa fraternidade convivem com sentimentos de desamparo e agonia.

Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, amigo de militância na Polop, ainda em Belo Horizonte, e a quem tive o privilégio de abrigar em casa por meses durante a clandestinidade, desapareceu em 1971.

“Seu amigo esteve aqui”, disse sobre Beto um torturador da casa da morte, em Petrópolis, a Inês Etienne Romeu — outra amiga de juventude, então presa e barbaramente torturada.

O corpo do Beto nunca foi encontrado. Aos amigos que ficaram, cinquenta anos depois, a descrição das técnicas de ocultação de cadáver feita pelo coronel Paulo Malhães, que atuou nos centros de tortura da região Serrana do Rio, tem a força de uma cuspida no rosto. A agonia solitária dos que morreram sem amparo ainda nos pesa a alma. Os carrascos gozam a liberdade.

Mas aquele tempo também contém o oposto disso. Em 1973, parti para o exílio no Chile. Todos os dias, sempre ao meio-dia, meu amigo Apolo Heringer Lisboa, que lá chegou primeiro, passava em frente ao Senado à procura dos companheiros que deviam chegar. Era o ponto de encontro combinado. O dia em que nos reunimos todos, Apolo, Guido Rocha, Lúcia e eu, na fria Santiago, foi destes instantes que modificam o resto de nossas vidas.

Depois do Chile mais seis anos de exílio, de comitês de apoio a luta pela anistia e de torcida pelo novo Brasil que emergia contra a ditadura, pela democracia, com sede de liberdade. Em seguida as eleições para governadores, a extraordinária mobilização do povo brasileiro pelas Diretas Já consolidando o nosso compromisso com a democracia como valor absoluto.

José Aníbal é economista, deputado federal licenciado e ex-presidente do PSDB.